domingo, 17 de março de 2013

Mise-en-scène


Um, dois...cinco copos de café velam a luz que acompanha o compasso de meus escritos. À espera da palavra muda e recomposta que não sabe sentir. Foi no atraso que me encontraste; e agora é com atraso que te deixo. Mise-en-scène: lá fora o poste pinta teu rosto. Lábios alaranjados, frios. Me esperas? A chuva te apaga lentamente: vermelho, amarelo, vermelho, laranja. São agora os carros que te pintam no cruzamento. Estás parada no meio da rua, chorando (ou assim preciso te imaginar). Carros dançam à tua volta, não medem tua dor. Delicado, delicado. Meus pensamentos imploram para que eu te deixe intacta: go slowly. Mas não sou eu que te imagino feito marionete. É a luz que te contorna e te toma debaixo da chuva. Verde: a sinaleira abre e uma nova fila de carros te crucifica. É na contramão que te deixei, à espera de alguma luz branca que pudesse te salvar. Mas não sabiam de tua dor. Too late.

Que sufoco irremediável é este que toma os meus lábios? Recomponho, mas não é palavra. É falta de ar. Tua mão. Beijo. Teus braços, teus seios. Beijo. Uma luz branca perpassa veloz. Violência: esquecer. Outra luz branca que apaga lentamente o teu corpo sobre a cama. Pisco. Esqueço. Crucificada na contramão. Sobreposição do pensamento: a cama está no meio da rua. Encharcada e tomada pela chuva cinza. É a luz que pinta o teu corpo, revelando tua nudez aos poucos. Sai da chuva, vem. Pisco. Luz branca. Confusão. Não consigo. Mente vazia. Beijo. Chuva. Laranja, laranja, laranja. Agora sou eu: nua; à espera.

Bailarina debaixo das lamparinas que dança entre borbotões; trapezista sobre o meio fio, é preciso te desequilibrar. Perdoe-me, não há mais espaço para te imaginar. Um vento vermelho beija teu rosto. Transponho-te em um espaço disjunto com a precisão de maestro. Dispositivos da memória. Como esquecer? Sacrifício. Sacrifico-me. Uma porta se fecha atrás da outra: é preciso acreditar. Em algum lugar, em alguma cama me esperas?  Com um atraso inadvertido te perco entre os carros e a chuva; é na rua que te deixo. Intacta (não era assim que tinha que ser?). Cinza, cinza, cinza: muda. 

12 comentários:

  1. É possível ouvir além da chuva?
    O sentir e o imaginar ficam insuficientes.

    de uma pequeneza indiscreta ouço tocar...
    (http://youtu.be/sMsRPAolKjU)

    ResponderExcluir
  2. "Allons-y! E agora, como esquecer?"...Me encontras entre o "Mito de Sísifo" e o "Fragmentos de um Discurso Amoroso", foi lá que procurei te responder... em algum lugar. São sentimentos demasiadamente grandes (e turvos). Não sei...

    Não busco, nem aconselho a buscar, the greatest in every single detail. Ficaria à margem se encontrasse. Não buscamos o amor para “doar nossa falta”? (Falta esta que sequer conheço, e que jamais encontrarei). Há de se esquecer?

    Encontro tantas coisas na (e debaixo da) chuva. Sobretudo perguntas...

    “Este mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria a sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo? (...) Não há destino que não possa ser superado com o desespero”.

    J.

    ResponderExcluir
  3. “O imperfeito é o tempo da fascinação: parece vivo e no entanto não se mexe: presença imperfeita, morte imperfeita; nem esquecimento nem ressurreição; simplesmente o cansativo engano da memória.” (http://youtu.be/fDK67DID9aw)

    Eu não diria esquecer e sim libertar. Libertar-se do cheiro, do sabor, da imagem... Dessa construção imperfeita que persegue e aprisiona. Dar espaço a novas cores, sobrepor.

    Posso ouviu além das frases que a chuva produz ao tocar a superfície... É lá que encontro perguntas, respostas, mas sobre tudo a saudade.

    A rocha ainda rola...
    Bonsoir.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Peço desculpas por achar que eras outra..!

      Acontece que por vezes acorrento-me a uma construção tão perfeita, quase utópica (só não se completa pois não sei o que busco). Antes fosse a idealização imperfeita aos próprios olhos de quem idealiza (pois como indica o nome, divinizo).
      Enquanto à chuva, aí é outra história. Nela me abluo.
      (A saudade nos pega desprevenido: lavando a louça, no ponto de ônibus...)

      De qualquer maneira, me encontraste entre Sísifo e Fragmentos, porém a rocha já rolou, e se encontra em território plano. Ainda estou no cume (pronta para descer?)

      J.

      Excluir
  4. Não dê uma única face ao anonimato, inevitavelmente ele terá várias. Não são minhas as indagações acima resgatadas por você em recortes de um outro dia, mas assumo o fardo complexo que carrega este nome, Anônimo. Levando ao dilúvio minha crença de que a poesia dispensa apresentações.

    Então dentro da minha linha de pensamento busquei encontrar as palavras e elas duram... até meu egoísmo se alarmar. Ele me faz buscar um nome. Não quero um.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mesmo tendo várias, antagonicamente, o anônimo tem uma só cara. (Complicado, não?!).
      Antagônico mesmo é minha curiosidade, que me alimenta apressadamente, e ao mesmo tempo faz encerrar em si minhas inquietudes. Cruel, cruel..!


      Se entendi bem, és a anônima "Allons-y". Pensei muito em tuas palavras, caso querias saber...
      Bem, de qualquer forma te respondi acima. Talvez tenha feito mais sentido para você do que para a "outra pessoa".

      J.

      Excluir
  5. Sinto te desapontar.
    Como disse, não são meus os recortes de 3 de março... mas são minhas as assinaturas de 19, 26 e 27. Entretanto, te sinto agrilhoada naquelas palavras e me pergunto, porque aqui, 19 dias depois... e não lá, embaixo do que te trouxe além de um questionamento, percebo eu. Talvez aquela pessoa, como ela mesma descreve, “fadada ao anonimato”, não seja tão anônima assim, para você.

    Descer sim, mas não voltar ao ponto de partida. Fazer de cada passo um pedacinho de liberdade, seja no plano ou no íngreme da montanha. Redesenhar o absurdo. Compreender sua existência.

    “A saudade nos pega desprevenido”. Muitas e muitas vezes, porém acredito que esta seja apenas uma das portas de chegada. Me pego buscando a saudade, e é aí que a encontro, no profundo silêncio que há por detrás de todo cantar da chuva.
    “a dor no fundo esconde uma pontinha de prazer”.

    Se na chuva encontras a tua purificação, só tenho a te desejar um próximo dia de sol, para que haja irradiação de tamanha beleza.

    “avanço mostrando minha máscara com o dedo: ponho uma máscara (...) mas designo essa máscara com um dedo discreto (e insinuante).”

    e fim.
    B-

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Devo confessar, que fica um pouco difícil de te localizar - e mais ainda de saber o teu lugar de fala - quando não sei quem você(s) é (são)! Ninguém me é familiar, apesar do anonimato ser identificável.
      Para constar, despontada seria a última palavra em que pensaria. Estou intrigada e instigada.

      Qual o ponto de partida?! (não me rendo ao relativismo, mas às vezes não sei onde me encontro - e isso não é um problema). E mais, há fim?

      Te entendo, já estive aí, nesse lugar, da busca. Mas hoje percebo que a saudade se encontra em qualquer lugar, muitas vezes na desordem conformativa. Na minha bagunça e inquietação mais íntima.

      Não há conforto naquilo que escreves, obrigada. Sinto-me viva.

      Logo em seguida:"Toda paixão tem finalmente seu espectador: no momento de morrer, o capitão Paz não pode deixar de escrever à mulher que amou em silêncio: não há oblação amorosa sem teatro final: o signo é sempre vencedor".

      J.

      Excluir
  6. Fim, porque não pretendia voltar.

    se te encontrei entre Fragmentos e Sísifo, foi quando saí de “Histórias de Amor” procurando por algo que nem sei... Você me pede um ponto de partida e me questiona sobre seu final, eu não possuo estas respostas, acho que drapejamos em um eterno meio. Não que isto seja ruim, vejo como algo construtivo, quando na mesma medida ameaçador a nossos espelhos pessoais, algo como uma eterna busca pelo autoconhecimento. Acredito que isso seja falar de saudade, dor, amor... É possível se fazer isso com conforto?

    "O risco de um discurso de amor, de um discurso amoroso, provém sem dúvida principalmente da incerteza de seu objeto. Na verdade, do que se está falando?"

    Acho que foi por isso que voltei.

    Aos ouvidos: http://youtu.be/Ct-5H-CBx-o

    B-

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não (te) peço, nem questiono. [amor pelo amor, saudade pela saudade - a dor pelos dois]... deixo à livre interpretação: é questão de retórica.


      J.

      Excluir
  7. Que ar de indignação, é esse?
    foi só uma forma figurativa de jogar as palavras. Eu entendi o que você estava dizendo.
    Enfim.

    B-

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. "ar de indignação"... ai, ai..!
      Complicado é ler entonações virtuais, fique brava não! Não foi uma afronta (:

      Encontre-me por aí. J

      Excluir

A linguagem é como uma pele: com ela eu entre em contato com os outros.

Roland Barthes