quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Escadas


Eu sei bem que já é tarde: os ponteiros se despedem do presente anterior. E eu, eu me dispo de ti. Miles Davis anuncia, arrastado, no trompete a hora de partir: Ascenseur Pour l'Échafaud. Subo as escadas, passos cada vez mais certeiros; o choro cada vez mais seco da parede que não aguenta mais murros. Muros de faca afiada que cegamente atira. Olhos mirando o espelho,  reflexo de desgosto e prazer que pausa. Pausa e continua em outrem. Não tenho mais tempo a perder. Pressa e presságio. Esgota-se a tentativa – dessa tristeza vã, sem esperança ou verso. Descarrego em prosa as mãos trêmulas que teimam em sentir. Papel riscado às pressas, nem amassado ou passado a limpo. Descarregado para não ressentir. O que me reserva este último gole de café frio? Não sou mulher de ter medo. Esse silêncio que me carrega e me pondera não é medo, não. É coragem, é um tapa na cara. Há pouco escrevia sobre a confiança. Isso não é coisa sobre o qual se escreve. Inútil (e necessário) é render-se à linguagem e ilusão. Subo as escadas, passos cada vez mais certeiros, densos. Vagarosamente minha mão acaricia, rasgando, o papel de desgosto. Em quem eu penso? Talvez já não saiba mais, deixei-me levar.

Desculpa, volte cá, deixe-me terminar o que estava dizendo. Esse passo allegro moderato me  desequilibrou, abaixo o volume se for preciso.

Não, não. Vá embora, já é tarde. Sim, tarde demais para continuar com algo que nunca teve começo. Foi de improviso, descabido. Recomponho-te com desalento: teus olhos, tua boca. Não há mais lugar para te colocar, te imaginar. Vá agora, eu já disse. É tarde. O verso se arrasta noite adentro, mas tua lembrança não. Não pode. Medito enquanto lavo essa louça que deixaste aqui. Fluxos de palavras molham o papel que rabisco, absolvo. Meço o esforço pelas palmas de tua mão que percorrem o meu corpo. Tarde larguei da irremediável esperança de te ter aqui. Besteira minha achar que pudesse encurtar esse espaço. Espaço vazio que não deve ser preenchido com o desejo, muito menos essa esperança: a fome que faz regurgitar indolência. A raiva me toma te tomando sem sede, que obstrui o ralo e passa rasgando em minha garganta. Não há poesia que faça confessar, nem acalentar; convalescença turva. O verso suja as escadas que pesam em mim. Antes fosse essa pressa presságio: inquietação é precaução. Mal pensara em passar por isso de novo. Ingenuidade achar que não estava prescrito. Companhias outras eu tenho, embora os entretantos sejam muitos. A escrita é contingência e muitas vezes pleonasmo: senti ao sentir. Foi doando minha falta que descobri o que sobrava: o que sobrava em mim, e aquilo que sobrava de mim. Unhas roídas inculcam o vômito final; espetáculo de nervos palpitando na beira dos lábios castos. É para lá, apontam: o caminho que terrorizará meus passos magnetizados. Hesito – olho em volta. Não, não apontam para mim [alívio], é para ti: vá. A solidão é troppo dolce. A vida urge ser vivida: receita a ser seguida.

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Roland Barthes